quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O Deus das avencas

(...) Uma paixão interrompida não se dá ao luxo de retroceder ao passado longínquo em nossa introspecção, ela nos persegue resoluta, a uma distância segura, como um cão faminto por uma estrada abandonada, e quando você se vira e arrisca uma aproximação, foge amedrontada, pois essa distância é fruto de uma violência irreparável e não pode, é óbvio, ser vencida. Daniel Galera in: O deus das avencas. Companhia das Letras

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Mãe

Mãe é diferente de pessoa. Falando agora por mim - e valeria também para a minha mãe, - mãe é loucura. Mãe é condição mais absurda, e talvez errada, que a sociedade ocidental inventou e ciltivou. Amar uma mãe e amar os filhos é um desvio insustentável do amor. Um sentimento que ultrapassa a própria capacidade de compreender e até de sentir o amor. Noemi Jaffe in: Lili: novela de um luto.

terça-feira, 28 de julho de 2020

“É assim. Mas a piedade some quando de repente abro os olhos, me ergo e já sei que qualquer condescendência, especialmente de alguém consigo mesmo, é o primeiro passo para o ridículo. Como são dignas de pena as pessoas que sentem pena de si. Como sofri, diz um, eu sofri mais, diz o outro e de imediato tem indício uma competição. Se não podem se contentar em disputar riquezas e propriedades, fazem do seu vazio um latifúndio, medindo os lotes de dor, o acres de doenças e injustiças. Quem sofre mais, eu ou Anna? É claro que é Anna, mas isso não diminui em nada o que venho passando, nem o fato de a dor dela ser maior a torna mais nobre do que eu”.

(Noemi Jaffe in: O que ela sussurra. Companhia das Letras) 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

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(...) já que a única coisa em que você acreditava era naquilo que estava fazendo no momento e era por isso que conseguia manter uma alegria impossível, mesmo quando tudo anunciava o fim. 

(Noemi Jaffe in: O que ela sussurra. Companhia das Letras) 

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Da concisão 

Possivelmente tudo começou ato contínuo à leitura do s do adeus. Lembro-me ainda hoje - dez anos depois - daquele bilhete elíptico; não era longo feito sabre. Tinha a concisão do punhal: Acabou-se, adeus. Os deuses do desamor, implacáveis, condenaram-me duplamente tirando razão deixando memória. Andarilho mnêmico - sou sim. Tudo que vejo dia todo evoca meu passado ao lado dela. 

Evandro Affonso Ferreira in: O Mendigo Que Sabia de Cor Os Adágios de Erasmo de Rotterdam. Ed. Record. 

sexta-feira, 31 de março de 2017

da fuga

E uma fome de aceitá-la por inteiro, porque a imaginação é o mais cretino dos dons humanos, a fuga mais ardilosa da realidade. E ela adorava fugir.

Alex Sens in: O frágil toque dos mutilados. Ed. Autêntica.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

da intensidade

E acontece o mesmo quando estou alegre ou triste. Tenho medo de não aguentar a intensidade de tudo. Minhas lágrimas já devem estar confusas de tanto serem usadas para funções diferentes em situações semelhantes: rua bonita - chorar de alegria ou de tristeza? Filme bonito - alegria ou tristeza? A beleza me confunde. Audrey Hepburn, por exemplo. Toda vez que a vejo, quero ser exatamente como ela, e não sei se sinto alegria porque a vida é tão generosa ou se me entristeço. De que adianta a generosidade da beleza? O que posso fazer com ela?

Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

das ausências, em ti, em mim

Mas, desde que você foi foi embora e, principalmente, desde que recebi sua carta, não importam mais as ausências que você sente, elas não estão mais comigo. O que conta agora é a ausência inesperada que causa em mim.

Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).

do que não se diz

(...) aprendi a conhecer as pessoas pelo que elas não dizem. Ouço e vejo nos gestos dela o que ela cala e que para mim é algo assim: não sou esse ácido nem essa pedra; minha dureza comunica sinais vagos, em volume muito baixo e, se alguém quiser escutar, terá que apurar os ouvidos, encostar a cabeça no chão, nas paredes, porque eu não vou fazer o menor esforço para gritar ou ser ouvida; mas estou falando, aqui, sob os escombros do silêncio, baixinho, uma palavra; um tipo de ai. Eu ouço esse ai e é nele que reconheço que a separação entre vocês, a insistência obstinada no vazio que ela criou ao redor, escondem um tipo de arrependimento. Como se ela soubesse que você não foi o único culpado e essa fosse a maior dor: saber que ela poderia ter feito algo para você ficar.

Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

da poesia

Efraim Medina Reyes in: Pistoleiros/Putas e Dementes. Ed. Garamond.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

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Efraim Medina Reyes in: Pistoleiros/Putas e Dementes. Ed. Garamond.

da paixão

A paixão nasce de um encontro casual, sempre assimétrico. Um só é aprisionado por um detalhe que vai condensar – durante um tempo – o conjunto das causas do desejo.
O apaixonado, aprisionado pelo movimento de uma mão ou de um olhar, se verá amarrado àquilo que o apaixona, àquela beleza convulsiva, “erótica-velada, explosiva-fixa, mágica-circunstancial”. Que André Breton evoca em L’Amour fou.

HASSOUN, J. A crueldade melancólica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Da falta

Ninguém é tão presente pra nós quanto aqueles que nos faltam, eu já me dera conta.

Marcelo Backes in: A casa cai. Companhia das Letras.

Preso-livre ou livre-preso

Imre, onde você estiver, preso-livre ou livre-preso, na rua, na prisão, no quarto de outra mulher, numa casa abandonada no meio de alguma estrada, na Áustria, para onde você não fugiria, porque não suporta nem pronunciar a palavra fuga (que não precisa ser ruim, porque fugir é o lugar do homem e até ficar tantas vezes é fugir), porque para você as palavras sempre querem dizer só uma coisa e você não percebe que elas querem dizer muitas - me ouça, do jeito que você conseguir: com as mãos, com os olhos, com os dedos. A palavra que eu te disse quando não conseguia decidir se vinha ou não para cá foi szia, aquela mesma que eu sempre falava e você fingia que ficava conspícuo mas eu percebia que você estava rindo disfarçando, do mesmo jeito que você ria quando eu te beijava nos dedos, no nariz, nos lóbulos, nos fios dos cabelos, no osso ilíaco e você ficava envergonhado mas também feliz. Essa palavra significa tanto "oi" como "tchau". Eu disse szia porque, de uma forma que nem eu sabia muito bem qual era, queria que você me ajudasse a decidir. Mas você não entendeu daquela vez e nem entende agora; você decidiu por mim que aquilo era "tchau" e praticamente me expulsou; resolveu no meu lugar... (...) Me ouça, onde quer que você esteja, (...) que, se um dia escrevessem alguma coisa, seria: "Dessa vez eu não me atrasei", porque você se atrasava para tudo e eu nunca; foi por isso que eu disse szia. Não podia me atrasar ao decidir se ficava ou ia embora, depois que eles chegaram e eu vi que você iria ficar até ser preso-livre...

Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).

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Do significado


Mas as palavras carregam coisas que ficam além do que elas dizem, num lugar onde está o que elas querem dizer. Eu sinto como se elas guardassem uma origem perdida. Então quero, desse jeito teimoso que você, Martim e todos recriminam, criar um vínculo entre aquilo que a palavra foi um dia e o significado de agora. Parece que, desse jeito, as palavras e as coisas voltam a ter algum sentido maior. (...) me faz pensar em outras palavras e frases vazias que nós dissemos um para o outro, como: "Não concordo"; "Você não me compreende"; "Nós realmente não vivemos no mesmo mundo". Essas palavras não dizem nada e só substituem aquilo que realmente gostariam de dizer, que é: "Por favor, fique imediatamente já comigo para sempre e não se meta a fazer o que você acha que tem que ser feito, porque nunca há nada a ser feito e o que quer que você faça, na situação que se armou, é inútil e só vai servir à sua vaidade ou ao seu orgulho"; "Venha comigo, Imre".

Noemi Jaffe in: Írisz: As Orquídeas (Cia. das Letras).

www.vemcaluisa.blogspot.com.br